terça-feira, 21 de junho de 2016

MEMORIAL DE NATAL

     Assim como o Menino Jesus, eu também nasci no dia 25 de dezembro. Indubitavelmente, aquele 25 de dezembro era um dia especialíssimo para mim, eu estava completando 50 anos de vida, vivida "it my way"! Carregando toda essa existência nas costas me sentia um vetusto! Creio piamente que este sentimento era psicológico, estava em mim influenciado pelos meus amigos que reiteravam, insistentemente, que minha essência era de um velho desde tenra idade: minhas roupas, minhas preferências e até a decoração da minha casa eram sinais nítidos de gosto exclusivo de um idoso. Entretanto, diziam meus amigos, que a prova cabal da minha essência de um velhinho estava na indecifrável opção feita por mim de passar o dia do meu aniversário, 25 de dezembro, com os dezesseis velhinhos internos do Asilo São Vladimir de Kiev. Com esta minha incompreensível decisão, desmistificava de vez o velhinho que habitava em meu ser, afirmavam os amigos. Há quem diga, ainda, que eu seria motivo de graçolas, pois abri mão de comemorar meu aniversário com os amigos no sofisticadíssimo restaurante Sublimotion, onde eu receberia presentes por duas datas comemorativas: Natal e Aniversário. E, ao contrário do que os amigos almejavam para mim, optei por comprar no shopping, com antecedência, dezesseis presentes para os velhinhos do asilo, pois era, irremediavelmente, com os velhinhos que eu queria comemorar, simultaneamente, o Natal e o meu aniversário.      Contratei o renomado Buffet Sibite, “the Best” quando se trata de bufê, para servir os comes e bebes, em louvação às datas comemorativas, não somente para os internos do asilo, como também para os funcionários. Adentrei no asilo um pouco antes do horário habitual em que era servido o almoço aos velhinhos e fui direto, levando comigo sacolas abarrotadas com os presentes, para o salão de recreação, onde aconteceriam as comemorações. Antes que começasse a comilança, resolvi fazer a distribuição dos presentes. E entreguei, com muitíssimo gosto e imensa alegria no meu coração, para cada um deles, uma calça e uma camisa (obviamente antes de fazer aquisição das respectivas peças de vestuário, solicitei à diretora do asilo as medidas de cada um). Todos os anciãos ficaram emocionados e radiantes com os presentes, com exceção do Sr. Diógenes Borges, um quase nonagenário, rotulado por todos - internos e funcionários do asilo -, como um rabugento sem causa. Sem nenhum constrangimento, Sr. Diógenes, assim que abriu o embrulho do presente, começou a resmungar:      - Que presente sem propósito. Onde já se viu tamanho disparate? Eu sou um homem à véspera de completar noventa anos de idade, sou cadeirante e vivo vinte e quatro horas enfurnado neste asilo, não saio daqui nem para ir ali à esquina. E sendo assim, para que me servem esta calça e esta camisa? É inegável que sejam duas peças de roupas bonitas e de boa marca, no entanto, o ilustre escritor desperdiçou seu dinheiro. Pois, para mim, não há serventia nenhuma este seu presente. Todavia, para não afrontar a finesse do escritor me reservo o direito de ficar com a calça e a camisa. Usarei ambas as peças como decoração no meu guarda roupas. Agora, que é uma discrepância este presente, é!        Fiquei imensamente desconcertado. Naquele momento, não sei por que cargas d'água, lembrei-me da frase proferida pela escritora austríaca Marie von Ebner-Eschenbach: “Na juventude aprendemos, na velhice compreendemos". Após ficar alguns instantes introspectivo, revestido da minha peculiar timidez, me aproximei do Sr. Diógenes Borges e a ele perguntei com a voz totalmente presa e trêmula:        - Qual é o presente que o senhor gostaria de ganhar neste Natal, Sr. Diógenes?      - Já que o escritor insiste em me presentear neste dia do Natal, sem pestanejar, lhe digo: eu gostaria que o senhor me levasse até o Aterro do Flamengo, lá tem um lindo pé de ipê amarelo, que eu mesmo plantei. E eu quero ir até lá para ficar deitado em uma espreguiçadeira, sob o meu pé de ipê amarelo, até a hora do ângelus. Pois é sabido que, quando alguém está sob um pé de ipê amarelo, na hora ângelus, os anjos lhe concedem benesses. Vou lhe contar um segredo, escritor, ao contrário do que todo mundo pensa, os anjos têm asas amarelas, não brancas.        - Sr. Diógenes, o senhor tem certeza absoluta que é este o presente de Natal que quer ganhar? Visitar o pé de ipê amarelo, no Aterro do Flamengo?      - Escritor amigo, tenho certeza absoluta! A mesma certeza absoluta de que sou um velho. Quero ir até o Aterro do Flamengo, rever o pé de ipê amarelo que eu mesmo plantei em priscas eras.        Sr. Diógenes Borges obteve autorização da diretora do asilo para ir até o Aterro do Flamengo, desde que um enfermeiro fosse conosco. Um dos cuidadores de idosos do asilo levou o Sr. Diógenes para tomar banho e trocar de roupa. Para minha grata surpresa, quando Sr. Diógenes reapareceu no salão de recreação, sendo conduzido na sua cadeira de rodas, estava trajando a calça e a camisa com que eu o presenteei.  Em sua mão, dependurado pela alça, estava o radinho de pilha e no seu colo estava o exemplar do livro "Great Expectations", de autoria de Charles Dickens. Antes de deixarmos o local em petit comité, Sr. Diógenes deixou-nos ciente de que há mais de cinco anos ele não saía do Asilo São Vladimir de Kiev.      Enquanto fazíamos a travessia da Avenida Rio Branco, completamente desabitada de pedestres, Sr. Diógenes, sentado no banco do carona, não parava de olhar para os dois lados da avenida. Era como se ele quisesse identificar alguém ou alguma coisa. Ao chegarmos ao Aterro do Flamengo, Sr. Diógenes mostrou-nos o pé de ipê amarelo que ele havia plantado outrora. Com ajuda do enfermeiro tirei-o de dentro do carro e em meus braços carreguei-o até a árvore, onde o enfermeiro já havia armado a espreguiçadeira. Já acomodado ele comentou:      - Veja escritor, que beleza indevassável, o meu ipê amarelo está florido e as folhas emolduram belamente a nossa visão da Igreja de Nossa Senhora da Glória do Outeiro.  - É mesmo Sr. Diógenes, é uma visão esplêndida! Maravilhosamente esplendorosa mesmo! Em que época o senhor plantou este pé de ipê amarelo?  - Sabe escritor, eu fui gari. Ou se preferir fui varredor de ruas. Eu era o gari responsável por varrer todos os dias, de segunda a sábado, as calçadas da Avenida Rio Branco. Varria a avenida todinha, do começo ao fim. Como na hora do meu almoço precisava de um local para descansar longe da barulhenta, agitada e intransitável avenida, eu vinha para cá, para o Aterro do Flamengo, almoçar a comida da minha marmita e depois descansar. Foi aí que eu resolvi plantar este pé de ipê, para demarcar meu paraíso particular aqui. Sob a sombra do meu ipê amarelo, eu lia os livros que encontrava nas lixeiras da Avenida Rio Branco. Li muitos, muitíssimos livros sem sequer comprar um, escritor. Sou um autodidata, acredite, aprendi a falar fluentemente o inglês, o francês e o alemão, lendo livros achados nas lixeiras da Avenida Rio Branco. Na escola mesmo, somente fiquei até aprender a escrever meu nome. Sabe a rica biblioteca do Asilo São Vladimir de Kiev, com mais de três mil livros? Todos foram doados por mim. Doei e cataloguei livro por livro, todos resgatados das lixeiras da avenida. Entre os livros que doei para a biblioteca está este exemplar de "Great Expectations", o qual estou ansioso para reler. Agora, se o escritor não se incomodar, quero ficar aqui sozinho, sob a sombra do meu ipê, no meu paraíso particular, em silêncio, para começar a relê-lo e ouvir músicas pelo meu radinho de pilha. Eu tenho esta mania: ler ouvindo música, escritor. Pode ir escritor, como dizem os jovens, vá dar um rolê pelo aterro e leve consigo o enfermeiro. Deixe-me a sós, eu com meu ipê amarelo.        Para não contrariá-lo, atendemos ao pedido do Sr. Diógenes e mantivemos uma razoável distância da árvore. Ele, então, ligou o rádio e sintonizou em uma estação em que estava tocando a música "Juizo final", interpretada por Nelson Cavaquinho. De onde estávamos, o enfermeiro e eu, ouvíamos perfeitamente a música e observávamos atentos a cena. O idoso, com o livro "Great Expectations", aberto no colo, cantarolava os versos da estonteante canção. Segundos antes do término da música, Sr. Diógenes assentou sua cabeça no encosto da espreguiçadeira, e já não cantarolava e sim balbuciava os últimos versos da música. Em seguida ficou inerte. E continuou inerte, até mesmo quando uma repentina e mediana rajada de vento arrancou o livro do seu colo e derrubou-o no chão. Alertado pelo enfermeiro, que achou muito estranha a estagnação contínua dele que, por natureza, era inquieto, fomos até ele. O profissional de enfermagem buscou sinais vitais no velhinho e não encontrou. Acabara de morrer Sr. Diógenes Borges. O ex-gari sábio e poliglota faleceu sob a sombra do seu ipê, que estava florido. De vez em quando, eu vou ao Aterro do Flamengo visitar o pé de ipê amarelo, plantado pelo Sr. Diógenes Borges. Para mim, desde então, aquele pé de ipê amarelo não é mais somente uma árvore, também é um memorial de Natal. (Todos direitos reservados deste texto a Antônio Menrod. Este material não pode ser publicado, transmitido, reescrito ou redistribuído sem prévia autorização)