sábado, 28 de julho de 2018

DEUS ESTÁ MORTO

Antes de tudo, para que não pairem dúvidas sobre a conduta ilibada e as virtudes teologais do padre Hamílcar Montserrat, quero registrar que ele possui pleno gozo de suas faculdades mentais e sempre foi considerado um exegeta de primeira grandeza intelectual, com formação acadêmica no Pontifício Instituto Bíblico em Roma, onde obteve summa cum laude. Inclusive, seu nome figura na lista tríplice de candidatos, dentre os quais o Papa escolherá um, para receber a ordenação episcopal, plenitude do sacerdócio. Posto isto, segue a narração dos fatos: Tudo transcorria dentro da normalidade na celebração da missa das 7h do 16º Domingo do Tempo Comum presidida pelo padre Hamílcar Montserrat, na Paróquia Santa Emerenciana, porém, depois de realizar a transubstanciação da hóstia e do vinho, ele fez a genuflexão e, ao ficar de pé, permaneceu inerte, com o olhar fixo para assembleia de fiéis, por um espaço de tempo, sem nada falar. Em seguida, fechou o Missal Romano, que estava assentado no suporte de apoio sobre o altar e começou a bramir: - Deus está morto! Deus está morto! Deus está morto! – Ululante, proferiu as palavras o sacerdote, enquanto se despia dos seus paramentos litúrgicos.  Para os paroquianos presentes, mesmo atônitos, diante da cena inusitada e teratológica, sem precedentes no universo eclesiástico, não passou despercebido que a fisionomia do padre Hamílcar Montserrat estava transfigurada, assim como sua voz também era irreconhecível. Pelo viés da compreensão da fé, ficou subentendido através dos atos, falas e ações que todos estavam testemunhando uma revelação divina. - Sou o único sobrevivente do Céu. Eu consegui escapar antes do cataclismo que devastou por completo os que habitavam o Céu. Não existem mais santos e anjos no Céu. Não existe mais Deus. Deus está morto. Ele foi morto pelo próprio Filho... Jesus Cristo matou o Pai. E, depois de ceifar a vida de Deus, Jesus Cristo cometeu suicídio. O pecado da ganância desenfreada pelo poder que assola a Terra corrói e destrói a humanidade dia e noite transcendeu a Terra e chegou ao Céu, aniquilando Pai e Filho. Cumpriu-se a profecia: “Assim na Terra como no Céu!”. Foi incisiva, no relato, a voz que falava pela boca do padre Hamílcar Montserrat. Após ficar livre da, assim designada, incorporação espiritual, padre Hamílcar Montserrat, aviltado ao ver seus paramentos esparramados no chão em torno do altar-mor, não soube explicar aos féis o que se desencadeou depois da transubstanciação e de ter feito a genuflexão. Com essa negação da lembrança do dileto padre, toda a assembleia presente entrou em profundo estado de apavoramento. Gritos, súplicas, choros e ranger de dentes extrapolaram para além da Paróquia Santa Emerenciana.  Atônito, depois de ouvir em minúcias tudo o que foi dito pela sua boca enquanto estava em transe ritualista, o sacerdote revestiu seus paramentos litúrgicos e foi ao púlpito, onde exigiu postura religiosa e serenidade dos féis por se encontrarem dentro da Igreja.   - Meus irmãos, minhas irmãs, vamos manter a calma para concatenarmos as ideias. Assim nos ensina a Palavra de Deus: “Os lábios do sacerdote devem guardar os mandamentos de Deus e de sua boca se espera o ensinamento seguro”, está em Malaquias 2,7. Pois bem, diante de tudo que foi testemunhado aqui, creio piamente que eu fui escolhido para ser camerlengo do Céu, já que o Céu se tornou uma Sé Vacante, com a morte de Deus e o suicídio de Jesus Cristo, seu único Filho que detinha o direito sucessório legitimado. Embasado nesta realidade da morte de Deus e de Jesus Cristo, fica explicitado o porquê de tanta maldade, tanto desmando religioso, social e político, tanta injustiça, tanta fome na Terra, tanta corrupção, tanto impostor religioso, tanta troca de valores éticos e morais, tanta lascívia, tanta intolerância religiosa, tanta prevaricação que nos permeiam neste mundo. "Se Deus não existe, tudo é permitido". Esta é uma afirmação niilista atribuída ao escritor russo Fiódor Dostoiévski. O ser humano pérfido, com a morte de Deus, autoproclamou-se Todo-poderoso, acima do bem e do mal. Desse modo, pratica todos os tipos de atrocidades, uma vez que Deus está morto e, portanto, não haverá uma punição do cânone espiritual. E, no que tange a regra da justiça dos homens, essa está sob o jugo do próprio homem. Porém, está escrito em Isaías 5,20: “Ai daquele que chama de bem o mal ou de mal o bem”. Ledo engano, quem pensar que como camerlengo do Céu, eu vou ser conivente com quem é espúrio e usa o santo nome de Deus em vão. Porque está escrito em Números 14,18: “Deus não trata o culpado como se fosse inocente”.  Há quem diga que esse episódio nunca existiu. E tudo narrado aqui não passa de uma heresia desmedida. Mas uma coisa é incontestável: a humanidade perdeu o temor a Deus. A salvação espiritual se transformou em algo souvenir. A fé deixou de ser um importante fundamento da vida, agora viver é tão somente buscar prosperidade financeira. A tese do livre arbítrio, para mim, não passa de privação de conhecimento teologal. E, ainda que Deus não esteja morto, Ele se exilou em um lugar incerto e não sabido por vergonha de ter criado uma humanidade podre.   (Todos direitos reservados deste texto a Antônio Menrod. Este material não pode ser publicado, transmitido, reescrito ou redistribuído sem prévia autorização)