segunda-feira, 21 de abril de 2008

CONTO - LAÇOS DE AMIZADE

Conto escrito em 21/04/2000.


LAÇOS DE AMIZADE

Assim que chegou à Rodoviária Novo Rio, Emílio foi direto ao guichê da Empresa de Ônibus Sameiro que detinha o direito da linha: Propriá – SE / Rio de Janeiro – RJ. A atendente confirmou que a chegada do ônibus estava prevista para às 10h30. De posse da informação, Emílio foi para o segundo piso do terminal rodoviário, encostou-se no parapeito, que dava visão ampla da área de desembarque. Retirou um cigarro do maço, acendeu, tragou-o e soltou a fumaça para o alto, enquanto relembrava seu passado.
A contínua chegada de ônibus das cinco regiões brasileiras fazia com que o terminal ficasse intransitável. Eram milhares de pessoas que chegavam, outras que partiam e mais tantas que aguardavam a chegada de parentes ou amigos.
Emílio estava ali para recepcionar seu amigo de infância, Wellington. Na verdade, Wellington era mais que amigo, o irmão que Emílio nunca teve, pois ele era filho único. Ambos tinham a mesma idade, nasceram no mesmo dia, e estudaram do pré-escolar ao 2º grau juntos, enfim, só se separaram quando Emílio veio tentar a sorte na Cidade Maravilhosa, fato ocorrido há quinze anos. Emílio teve um considerável progresso financeiro e profissional. Já era proprietário de um conjugado na Rocinha e trabalhava como supervisor de serviços gerais no rico condomínio American, em São Conrado, na Zona Sul. Emílio recebeu a carta de Wellington pedindo respaldo para que ele também viesse para o Rio de Janeiro em busca de uma oportunidade de vida melhor, pois ele havia se casado e era pai de uma criança de 1 ano e os três estavam passando grandes necessidades, inclusive fome. Diante do fato de penúria apresentado pelo amigo, Emílio não pensou duas vezes, não só deu o aval para o amigo vir, mas também mandou o dinheiro da passagem.
Mergulhado nas lembranças, Emílio não viu quando o ônibus entrou na área de desembarque. Foi surpreendido com os gritos de Wellington.

___ Emílio... Emílio, aqui embaixo... É assim que você ia me receber com festa?

___ Oh meu amigo, perdoe este meu deslize, de fato eu deveria estar aí embaixo para lhe dar um abraço de boas vindas, assim que você pusesse os pés no solo carioca.

___ Chegue cá...Venha me dar um abraço!

O encontro entre os dois foi de muita emoção. Abraçaram-se, choraram e se abraçaram mais vezes, até cantarolaram a música que cantavam na época de criança, à beira do Rio São Francisco, em noite enluarada.
“Meu papagaio das asas douradas
quem tem namorada brinca / meu papagaio
quem não tem fica sem nada / meu papagaio.
Meu papagaio não tem ouro nem tem brinco
em outras terras eu não finco / meu papagaio
minha terra é Sergipe / meu papagaio!”

Muitos dos presentes, tanto do primeiro e do segundo piso, bateram palmas e, mais uma vez, os amigos se abraçaram.
Emílio começou a perguntar pelas as pessoas que fizeram parte da sua vida, quando morou em Propriá.

___ Diga-me, a como andas seu Zequinha dos Cocos? E a professora dona Lili? Seu Zezé e dona Caçula, como estão? Irmã Eleonora, Irmã Maria José, Irmã Lourdes, ainda estão trabalhando na Pastoral da Educação? E Dom Castro ainda é bispo de Propriá?

___ Heim, calma Emílio! Haverá tempo de sobra para eu lhe dar a ficha de todo mundo de Propriá.

___ Cadê suas malas?

___ Estão lá do outro lado, perto das escadas rolantes, deixei as malas lá para lhe procurar, pois você não estava no portão verde.

___ Você é maluco Wellington? Aqui não é Propriá não. No Rio, se a pessoa não tiver cuidado, os ladrões roubam até o pensamento da gente, imagine malas!

___ Largue mão de ser besta, eu não sou matuto não. Tem alguém tomando conta das malas.

___ Alguém quem, cara pálida? Que eu saiba você não conhece ninguém aqui no Rio, além de mim, para confiar seus pertences.

___ Surpresa! Tenho uma surpresa pra você.

___ Que surpresa?

___ Vamos lá, você vai ver.

___ Então vamos!

Chegando no lado de embarque, no balcão de informações, Emílio viu uma bonita mulher, cabisbaixa, sentada sob as malas, dando de mamar a uma criança. Pasmo não entendendo por que Wellington, sempre caminhando na frente, se direcionando ao encontro da mulher. Quando chegaram diante da mulher, esta assustada levantou a cabeça, fazendo assim, com que Emílio a reconhecesse.

___ Priscila!... O que significa isso, Wellington?

Wellington pegou a criança dos braços da mãe e faz as apresentações.

___ Este é o meu filho, e esta é minha mulher.

___ Como sua mulher e seu filho? Você se casou com Priscila?

___ Sim! Estamos casados há dois anos, e do nosso amor nasceu Emílio. Priscila e eu colocamos o seu nome no nosso filho para homenageá-lo. O chamamos de Emilinho. Não lhe disse que tinha uma surpresa pra você?

___ Realmente eu estou muito surpreso.

Priscila que olhava para Emílio com um olhar de apavoramento nada tinha dito, até o marido lhe obrigar.

___ Oh Flor, cumprimenta o Emílio, nosso amigo e irmão.

___ Como vai você Emílio?

___ Bem! Acho que estou bem!

Emílio, pediu a Wellington que devolvesse a criança para a mãe, para os dois trocarem algumas palavras em particular.

___ Wellington, você me deve algumas explicações. Primeiro, o que a Priscila está fazendo aqui? Segundo, por que você não me contou que a mulher com que você havia se casado era a Priscila?

___ Etá, você e suas perguntas... Oh homem perguntador.

___ Wellington, não subestime minha inteligência. Você me escreve uma carta pedindo guarita para você poder trabalhar aqui no Rio, e você me aparece aqui casado com a Priscila, a mulher por quem fui apaixonado desde a meninice.

___ Nós dois éramos apaixonados Emílio.

___ Sim, nós dois. Entretanto fizemos um pacto, que nem um nem outro, ficaríamos com a Priscila, para não pôr em risco nossa amizade. E você, além de quebrar o pacto, ainda tem um filho com ela, e batiza a criança com meu nome. Tenha santa paciência, isso é demais pra minha cabeça.

___ Acho que fui indigno com você, meu amigo. Se você quiser, eu volto para Sergipe com minha mulher e meu filho daqui mesmo da rodoviária.

___ Sabe Wellington, eu até hoje só tinha um objetivo na vida, que era de ganhar dinheiro, ter uma independência financeira, para poder voltar a Propriá e casar com a Priscila. Pois, quando você me escreveu dizendo que havia se casado, eu pensei que seria com qualquer mulher, menos a Priscila. A mãe dela tinha verdadeira repugnância da sua pessoa, por que você não saia dos cabarés de Propriá.

___ Perdoe-me, Emílio, sei que errei. Vou pegar minha mulher e filho e vou voltar para onde nunca deveria ter saído.

___ Não! Você não vai fazer uma sandice dessa. Você é meu amigo, e Priscila, a partir de hoje, passará a ser somente a esposa do meu melhor amigo!

Ao voltarem para perto de Priscila, Emílio parabenizou-a pelo casamento com seu amigo Wellington e pelo nascimento de Emilinho. Priscila agradeceu a gentileza e acrescentou.

___ Eu não sei se o Wellington já lhe disse, mas além de colocarmos o seu nome no nosso filho, nós também queremos convidá-lo para ser padrinho de Emilinho.

___ Convite feito, convite aceito!

Solicitaram um carregador de malas e foram pegar um táxi, que os levaria à Rocinha. O trajeto se deu pela orla marítima, Priscila se mostrou fascinada pelas belezas naturais do Rio. Pelo o rádio do táxi, foi dada a notícia que estava acontecendo uma inclusão policial na Rocinha e, como era de praxe, os traficantes receberam a polícia com tiros. Como ao conjugado de Emílio ficava logo na entrada do morro, o taxista resolveu aventurar-se na empreitada de entrar na Rocinha. O aparato policial revistava pessoas e automóveis, que entravam ou saiam da Rocinha, a maior favela da América Latina.
Priscila observou que, no conjugado de Emílio, era tudo de bom gosto: móveis, eletrodomésticos e acessório domésticos. Emílio cedeu o único quarto para o casal amigo. Sempre procurando evitar troca de olhares com Priscila. Emílio retirou alguns pertences seus do armário do quarto, depois mandou Priscila arrumar as roupas dela, de Wellington e de Emilinho.
Enquanto Emílio e Priscila faziam as adaptações no conjugado, para melhores acomodações dos novos moradores, Wellington assistia à televisão na saleta e bebia cerveja, uma lata atrás da outra.
Haviam se passado onze meses e ainda Wellington não tinha conseguido emprego, a não ser um bico na quitanda da Rua C, na parte alta da Rocinha. Na quitanda, só trabalhou três semanas, foi dispensado por estar sempre cantando as freguesas solteiras e casadas, o dono do estabelecimento o demitiu antes que acontecesse o pior.
Certa feita, Emílio chegou em casa, por volta das 20h e encontrou Priscila chorando copiosamente e cheia de hematomas por todo o corpo.

___ O que aconteceu Priscila? Cadê o Wellington?

___ Não sei... Ele saiu!

___ Vocês brigaram?

Ela afirmou balançando a cabeça positivamente.

___ E o Emilinho.

___ Tá dormindo no quarto. Emílio eu preciso lhe falar algo.

___ Agora não Priscila, eu tenho que sair pra procurar o Wellington, antes que ele faça mais besteira.

___ Por favor Emílio. Me dê uma chance... Desde que cheguei aqui eu tento falar... Explicar algumas coisas e você, só faz me dispensar.

___ Falar o que Priscila? Você não me deve nenhuma explicação.

Emílio disse isso e foi se retirando em direção a porta, só parou quando Priscila fez uma revelação.

___ Você tem que deixar eu falar. Eu preciso lhe dizer que eu só aceitei me casar com Wellington, por que ele mentiu para mim, dizendo que você havia se casado aqui no Rio e já era pai de filhos.

___ Wellington foi capaz de inventar isso para forçar você a se casar com ele?

___ Foi?! Ele foi capaz... Por isso que ele me surrou quando eu disse a ele que iria lhe contar a verdade. Eu nunca deixei de lhe amar.

Emílio e Priscila ficaram inertes, olhando fixamente um para o outro, até quando ambos decidiram se entregar como homem e mulher, se amaram como só existissem os dois no mundo. Em seguida, Emílio saiu a procura do amigo, andou por ruas e vielas da Rocinha, foi encontrá-lo em uma roda de pagode no bar Parada dos Cornos, bebendo caipirinha. Emílio, tomado por uma ira nunca vista antes nele, foi a via de fato, arrastou o amigo pela camisa, para fora do bar, jogou-o na rua e os dois começaram a rolar no chão, trocando socos.
A turma do deixa disso interveio e conseguiu separar os brigões.

___ Emílio, o que o sergipano lhe fez pra você agir assim? Você sempre foi tão ponderado, aqui na Rocinha todo mundo lhe admira, justamente porque você é equilibrado e muito sensato. Vão para casa tomar um banho, vocês estão todo enlameados.

Esta fala foi dita por Tarcísio, líder comunitário da Rocinha, e um dos homens que ajudou a apaziguar os ânimos de Emílio e Wellington. Na Rocinha todos chamava Wellington de Sergipano.
Naquela noite, nenhum dos três falaram qualquer coisa entre si. O silêncio se apossou do conjugado. Mal amanheceu o dia Emílio saiu de casa, tinha passado toda a noite em claro, e chegou a uma conclusão. Foi até a administradora do condomínio e pediu as contas do emprego, o síndico, que lhe tinha bom apreço, tentou, em vão, dissuadir Emílio da idéia da demissão. Emílio foi irredutível no que queria.

___ Dr. Hugo Leonardo, eu queria, se possível, que o senhor aceitasse como meu substituto o meu amigo Wellington. Eu já havia pedido ao senhor, e o senhor me prometeu que, assim que tivesse uma vaga, o senhor o encaixaria no quadro de funcionários do Condomínio American!

___ Só pra mim entender melhor... você está pedindo as contas, somente para eu contratar esse seu amigo?

___ É!

___ Você não existe Emílio! O Brasil passa por uma monstruosa demanda de emprego e você larga um emprego de 15 anos, para ceder seu lugar a um amigo. É isso mesmo que você quer?

___ Este meu amigo tem capacidade para dar continuidade ao meu estilo de trabalho, o qual lhe agrada, assim como também aos condôminos. Portanto, peço-lhe que o contrate, ele é um pai de família honrado, honesto, por ele eu me responsabilizo.

___ Se é uma pessoa indicada por você Emílio, eu contrato. Você é um ser humano ímpar, Emílio. Um homem de grande coração. Durante os 15 anos de serviços prestados, honrou-nos com seu trabalho e com sua idoneidade. Mediante a esses fatos, eu farei o seguinte, em vez de você ser desligado do condomínio como se tivesse pedido as contas, desta forma, você perderia alguns direitos trabalhistas, eu mandarei você embora, você ganhará: fundo de garantia, seguro desemprego, mais os 40%. Se eu pudesse, eu contratava seu amigo, sem dispensar você, mas o estatuto do condomínio não permite a contratação de mais de doze funcionários, como todos os dozes funcionários são empregados há anos, e não existe nada que possa desabonar suas condutas, eu não posso dispensá-los só por dispensar.

___ Eu agradeço a sua benevolência Dr. Hugo Leonardo.

Emílio voltou para casa e fez a comunicação, a tarde, os dois amigos foram a administradora do condomínio. Emílio para receber sua rescisão e Wellington para ser admitido.
Os amigos ao saírem da Administração pararam em um quiosque na praia. Emílio pediu um coco e Wellington solicitou uma cerveja, no decorrer da conversa, Emílio revelou suas intenções.

___ Agora que você tem um emprego... que se diga de passagem um bom emprego, eu posso seguir meu caminho.

___ Não estou entendendo compadre! O que o senhor quer dizer com seguir seu caminho?

___ Eu vou voltar pra Propriá... Esses 15 anos deu pra ajuntar um bom dinheiro, vou botar um comércio em Propriá.

___ E o seu apartamento?

___ Você continuará morando lá com sua família, em troca me pagará um aluguel, afinal de contas você agora tem emprego e salário.

___ Você pode ir despreocupado, compadre, que todo mês eu vou depositar o dinheiro do aluguel e mais um pouco de dinheiro para ir abatendo na enorme dívida que tenho com o senhor.

___ Você não me deve nada!

___ Como não! Você sustentou a mim, a minha mulher e ao meu filho, até o berço do meu filho, foi você quem comprou.

___ Não há necessidade nenhuma de você me ressarcir das despesas que, por ventura, tive com você, com a comadre e com meu afilhado. Tudo que eu fiz, fiz com o coração, fiz pela nossa amizade. O depósito do aluguel é o suficiente.

___ Obrigado, amigo, por tudo. O que você fez por mim nem meu pai, se fosse vivo, faria. Você viaja quando?

___ Hoje à tarde.

___ Assim tão depressa?

___ O tempo urge.

___ Então vamos lá em casa, para você se despedir de Priscila e de Emilinho.

___ Não! É melhor não... Prefiro que você leve meu abraço e meu beijo aos dois.

___ E suas roupas, você não vai pegar?

___ Doe para a Associação de Moradores, lá eles doarão aos mais necessitados.

Os dois se abraçaram e choraram, Wellington não parou de agradecer ao amigo. Depois, Emílio pegou um táxi em direção ao Aeroporto Tom Jobim. Chegando ao aeroporto, Emílio foi direto ao porta-volumes, de onde retirou três malas e se dirigiu ao chekin, despachou as malas e foi a sala de espera aguardar o vôo que o levaria de volta a Sergipe, após 15 anos de ausência. Emílio havia planejado tudo milimetricamente em nome da amizade.